A farsa de Stan Lee

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O texto abaixo foi escrito por Thiago “El Cid” Cardim.

Quando os redatores do site gringo Mania resolveram fazer uma lista dos 20 maiores escritores de quadrinhos de todos os tempos (veja aqui), colocaram a mão em um verdadeiro vespeiro nerd. Dizendo que o mestre Will Eisner era homem de apenas uma única criação relevante – no caso, o personagem The Spirit – eles simplesmente o excluíram da lista.

Só por esta afirmação, que não faz qualquer sentido, já que a obra de Eisner é extensa e variada, repleta de criações que são ainda mais geniais do que o detetive mascarado de Central City, eles já mereciam 150 chibatadas. Esta é uma lista que só traz nomes dos quadrinhos dos EUA – e estamos falando do sujeito que revolucionou, tanto em termos de roteiro quanto em termos de arte, a forma de se contar histórias no mundo dos gibis americanos.

Mas o lance é que ainda vai ficar pior. Porque o primeiro colocado, o barbudão Alan Moore, é seguido de perto por um segundo colocado que me deixou ainda mais espantado: Stan Lee. E é a partir daí que eu resolvo escrever esta coluna, colocando a mão em um vespeiro ainda mais perigoso. Como assim, Stan Lee é o segundo melhor roteirista de quadrinhos de todos os tempos? Alô?

Estamos falando de um sujeito que, como escritor, não conseguia passar do nível mediano/básico. Sei que esta é uma afirmação que pode enfurecer os fãs puristas, aqueles que enxergam em Lee um deus dos comic books, encarnado em óculos fundo de garrafa e bigode, por ter criado os principais personagens da Marvel Comics.

Esqueça estas verdades absolutas que colocaram na sua cabeça. Eu posso ter a minha opinião, você também. Assim como eu posso dizer que não gosto de Alan Moore, Neil Gaiman e/ou Frank Miller, eu posso dizer que Stan Lee, o todo-poderoso Stan Lee, era um escritor medíocre. Um raio não vai cair do céu e me despedaçar só por causa disso. E já era hora de alguém contestar um dos paradigmas mais irritantes do mundo dos quadrinhos.

Vamos aos fatos: Stan Lee é um cara legal. Stan Lee é um cara bacana. Stan Lee é um cara batuta. Ele faz todas aquelas participações especiais nos filmes da Marvel, trata muito bem os fãs, tira fotos, dá autógrafos, tudo lindo. Eu sou um marvete inveterado, já falei sobre isso por aqui. Adoraria tirar uma foto com Stan Lee e ter um dos gibis clássicos do Homem-Aranha autografados por ele. Mas é necessário bom senso com esta história de idolatria. Stan Lee é mesmo um homem de talento inegável, um verdadeiro gênio. Mas não como roteirista – e sim como criador de personagens, o que é muito diferente.

Ele sabia, como ninguém, criar conceitos de sucesso. Foi uma tacada de mestre transformar a discussão sobre o preconceito vigente nos Estados Unidos da década de 60 em idéia para uma série de gibis – colocando Martin Luther King no papel do pacifista Professor Xavier e Malcolm X como o terrorista mutante Magneto. Bingo, nasciam os X-Men.

Lee ainda foi contra tudo e contra todos, concebendo um super-herói adolescente exatamente como os seus leitores, um natural born loser de óculos, rejeitado pelas garotas, criado pela tia superprotetora e com problemas de grana. Bastou dar a ele os poderes de uma aranha radiativa e pronto. Surge o Homem-Aranha, carro-chefe da Casa das Idéias e que, num primeiro momento, não chegou a convencer completamente o editor-chefe em comando. Isso sem falar no Quarteto Fantástico, a primeira família de super-heróis, cujo estilo “desafiadores do desconhecido” influencia criadores até os dias de hoje. Stan Lee era um homem de visão. O conceito de seus personagens é brilhante, resistiu ao tempo, cativa novos fãs até hoje. Mas nada disso faz dele um roteirista excepcional.

Como escritor, Stan Lee era apenas bom. Médio. Nota 6,5. Longe de ser ruim, mas igualmente longe de ser genial ou um dos “20 maiores escritores de quadrinhos de todos os tempos”. Baita exagero. Basta dar uma olhadinha em qualquer volume das Bibliotecas Históricas Marvel que a Panini Comics vem publicando no Brasil. O trabalho de Lee como escritor é, além de limitado, datado. É um feijão com arroz básico, sem aquele temperinho extra, que tem cheiro de anos 60/70.

O próprio Steve Ditko, desenhista e co-criador do Cabeça de Teia, tinha uma série de discussões criativas com Lee (leia-se “arranca-rabos”) por conta das soluções rocambolescas que ele propunha. Reza até a lenda que Ditko teria abandonado o título de vez quando o escritor decidiu que a identidade secreta do Duende Verde seria Norman Osborn, pai do melhor amigo de Peter Parker. Ditko, por sua vez, teria defendido que isso era uma solução de novela, folhetim televisivo, e que o ideal seria que o vilão fosse uma pessoa comum, uma solução inesperada e muito mais chocante. Nós sabemos qual foi o resultado da contenda.

Se formos comparar com o trabalho que contemporâneos como Eisner ou o próprio Gardner Fox, saindo da Era de Ouro e entrando na Era de Prata da DC, faziam na mesma geração, Lee fica muito, mas muito para trás mesmo. Verdade seja dita: os únicos momentos em que Stan Lee conseguia sair do mediano era quando tinha seus surtos de filósofo e escrevia as histórias-solo do Surfista Prateado. Ali, era possível ver lampejos de alguém que queria ir mais além do padrão, que queria pensar os personagens de maneira diferente, mais aprofundada.

Até o Homem-Aranha, minha especialidade e considerado como a obra-prima do velhinho, teve seus melhores momentos nas mãos de outros autores. As mais memoráveis histórias do Aracnídeo ficaram a cargo de nomes como Roger Stern (Nothing Can Stop the Juggernaut, The Kid Who Collects Spider-Man), Peter David (Sin-Eater and the Death of Jean DeWolff), J.M. de Matteis (Kraven’s Last Hunt) e, é claro, Gerry Conway (The Night Gwen Stacy Died).

Admito: o arco clássico If This Be My Destiny…!, publicado originalmente em Amazing Spider-Man de 31 a 33, é lindo, de tirar lágrimas dos olhos, inspiração descarada para o conflito com o Dr. Octopus no filme Homem-Aranha 2. Mas mantenho a minha opinião de que a origem do Escalador de Paredes ganhou (e MUITO!) em emoção e desenvolvimento de personagens quando Brian Michael Bendis fez sua reformulação para o Universo Ultimate. Ali, você passa a se importar de fato com a figura do Tio Ben e chega inclusive a sentir a perda junto com Peter. Podem me atirar pedras, pois é isso que estou dizendo: prefiro a origem do Bendis à do Lee.

Nem seria necessário comentar os trabalhos recentes do Mr. Excelsior, porque os últimos anos só depõem contra ele. Super-heróis inspirados nos Backstreet Boys, na Pamela Anderson, uma nova série de combatentes do crime animados para a TV e que não passa de pastiche de tudo que ele criou antes. Além, é claro, da embaraçosa coleção de especiais para a DC, na qual fazia as suas versões de como teriam sido as origens do Batman, da Mulher-Maravilha, do Super-Homem e de outros medalhões da concorrência se tivessem sido inventados por ele. Um trabalho nada memorável, pura e simples vergonha alheia, e que nos faz agradecer a Odin por ter feito o velhote se aposentar na hora certa. Prometo que vou evitar mais detalhes sobre sua passagem como apresentador de reality shows, ok?

Ídolos são ótimos. Mas quando se tornam invulneráveis a ponto de qualquer crítica a eles ser automaticamente transformada em pecado mortal, tem algo de muito errado nesta relação.

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