Shakespeare: as cinco adaptações mais inusitadas

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No dia 23 de abril, também conhecido como quarta-feira passada, William Shakespeare completaria 450 anos. A data também foi oficializada pela UNESCO como o Dia Mundial do Livro, e durante essa semana, você provavelmente vai ouvir falar muito dele por aí. E não poderia faltar uma homenagem delfiana também, afinal, trata-se do maior dramaturgo da história.

Na verdade é até difícil especificar o que faz a escrita de Shakespeare ser tão especial, mas o fato é que ele entendia a natureza humana como poucos. Ele traduziu sentimentos e emoções tão abstratos de um jeito tão simples e fácil de se identificar, teceu tramas e situações tão envolventes e criou personagens tão complexas e tão verdadeiras, que sua obra permanece atemporal e pertinente para qualquer tipo de pessoa, em qualquer lugar. Ao falar nele, muitos ainda pensam em atores de calça justa e camisa bufante falando difícil, mas a verdade é que muitas frases dele a gente usa no dia-a-dia sem nem perceber. Cada vez que você disser que “nem tudo que reluz é ouro” ou que “o amor é cego”, por exemplo, saiba que você está citando a peça O Mercador de Veneza. Chique, não? 😛

O nicho nerd nunca foi imune a essa influência. Só para citar alguns, ele apareceu “em pessoa” em clássicos como Além da Imaginação, Doctor Who, A Terra Tem Espaço, do Isaac Asimov e Sandman, do Neil Gaiman. E ele tem alguns fãs bastante ilustres, como o tremendíssimo Capitão Picard, de Star Trek: A Nova Geração.

Mais recentemente, tivemos também a participação do protagonista da peça A Tempestade n’A Liga Extraordinária de Alan Moore. E atualmente está no ar a ótima série Sons of Anarchy, que tem mais do que algumas semelhanças com Hamlet.

Enfim, a obra dele é fonte inesgotável para adaptações, remakes e interpretações dos mais diversos tipos. Algumas ficam ridículas, mas “chorar sobre as desgraças passadas é a maneira mais segura de atrair outras”, então vamos ignorar estes casos. Nessa lista veremos só filmes que ainda conseguiram fazer justiça ao material, apesar de mudarem aspectos, no mínimo, inusitados.

MENÇÃO HONROSA: RAN (Japão/França – 1985)
BASEADO EM: Rei Lear

Nesta lista, eu selecionei as adaptações mais pop ou mais engraçadas, mas não poderia deixar de citar este. A inspiração aqui é Rei Lear, uma das mais famosas tragédias d’O Bardo. Nele, o Rei da Grã-Bretanha, já idoso, resolve dividir seu reino entre suas três filhas, Goneril, Regan e Cordélia. Para decidir qual delas ficará com a maior parte, ele pede que as três declarem seu amor e gratidão a ele. As duas mais velhas prontamente apresentam seus melhores discursos de puxa-saco, mas Cordélia, a única que o amava de verdade, se recusa a participar da farsa e acaba banida. E mesmo deserdada, se casa com o Rei da França.

Suas duas irmãs, cada uma em poder de metade do Reino, se recusam a acolher o pai e conspiram para matá-lo, obrigando-o a fugir, acompanhado apenas de seu bobo e de um fiel Conde, que também foi banido, mas volta disfarçado de servo para ajudá-lo. Resumindo muito grosseiramente – e olha o spoiler – Cordélia volta com um exército para enfrentar as irmãs e tentar salvar o pai, e depois de uma sangrenta batalha, acaba presa e executada. O Rei Lear, já enlouquecido, acaba morrendo de tristeza por ela. E as duas irmãs malvadas, apaixonadas pelo mesmo homem, acabam causando a morte uma da outra.

O grande Akira Kurosawa (que também já tinha adaptado Macbeth em Trono Manchado de Sangue), levou essa trama para o Japão do século 16, quando Hidetora, um cruel senhor feudal, resolve dividir seu clã entre seus três filhos. O mais novo alerta o pai contra seus sanguinários irmãos, mas Hidetora entende isto como traição e o expulsa. E pouco depois, percebe que o filho estava certo, pois os dois mais velhos se unem contra ele, que passa a vagar e enlouquece ao ver de perto o preço que tiveram suas conquistas. Na caça pelo pai e o que sobrou de seu exército, os dois irmãos acabam massacrando vilas inteiras e espalhando o caos. O filme é impressionante, e épico, e apesar de se passar em um cenário totalmente diferente, ainda consegue ser tão trágico e brutal quanto a peça.

E agora sim, vamos aos reles mortais.

5 – ELA É O CARA (EUA – 2006)
BASEADO EM: Noite de Reis

Em Noite de Reis, acompanhamos Viola, uma moça que sobreviveu a um naufrágio e foi parar num reino chamado Illyria. Lá, ela se disfarça de homem, assume o nome de Cesário e arruma um emprego como mensageiro de um duque chamado Orsino, por quem acaba se apaixonando. O duque, por sua vez, ama uma mulher chamada Olívia, que não corresponde ao sentimento. Viola – ou melhor, Cesário – é encarregado de entregar as cartas de amor do duque, mas de tão frequentes as visitas, Olívia acaba se apaixonando é pelo mensageiro.

Já parece complicado o suficiente, mas ainda piora quando chega Sebastian, o irmão gêmeo de Viola, que ela pensava que tinha morrido no naufrágio. Olívia o vê, e pensando que ele é o Cesário – quer dizer, a Viola –, o pede em casamento, e ele aceita. Isso deixa o caminho livre para que Viola possa revelar sua verdadeira identidade e se casar com Orsino, mas até que cheguemos a esse final feliz, ainda tem muita confusão envolvendo um tio bêbado da Olívia, o mordomo, a empregada, o bobo da casa, etc. É difícil de explicar, mas é bastante engraçado.

Como você deve se lembrar da Sessão da Tarde, em Ela é o Cara, a Viola é interpretada por uma ainda jovem e não-degenerada Amanda Bynes. Ela chega na escola de seu irmão Sebastian e se passa por ele para poder entrar no time de futebol. Ela divide o dormitório com um rapaz chamado Duke Orsino (interpretado por um jovem mas já insosso Channing Tatum) e apesar de ser a fim dele, tenta ajudá-lo a conquistar a patricinha Olívia, que está mais interessada no próprio Sebastian. É a mesma trama, só que com estereótipos dos filmes de High School e com outro nome. Mas “o que é que há, pois, num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheiraria igualmente bem”, certo? 😛

O mais legal são as referências. A escola se chama Illyria, e quando Viola chega, dá para ver um cartaz divulgando que a turma de teatro está produzindo uma peça chamada What You Will, outro nome que Noite de Reis recebe em inglês. A pizzaria que os alunos da escola frequentam se chama Cesario’s. Em uma de suas conversas com Viola, Duke até diz que “alguns nascem grandes, alguns alcançam a grandeza e outros têm a grandeza imposta a eles”, uma famosa citação do texto original. O filme não é grande coisa, mas é muito simpático, e fica ainda mais tolerável se você assistir com o intuito de caçar estes easter eggs shakespearianos.

4 – 10 COISAS QUE EU ODEIO EM VOCÊ (EUA – 1999)
BASEADO EM: A Megera Domada

E já que estamos falando de comédias românticas teen, não podemos deixar de citar a melhor delas, a que nos presenteou com a icônica cena em que o futuro Coringa canta Can’t Take My Eyes Off You:

Dessa vez, o clássico transferido para um High School foi A Megera Domada. No original, temos Batista, um papai dedicado com duas belas filhas. A mais velha, Catarina, é geniosa, cheia de opiniões e considerada desagradável por toda a sociedade de Pádua. A mais nova, Bianca, é um verdadeiro anjo de doçura e tem dois pretendentes apaixonados. O problema é que o papai impôs uma regra em que a mais nova só poderá se casar quando a mais velha estiver casada. Então, os pretendentes de Bianca terão de encontrar algum louco que aceite se casar com a megera. E encontram Petrucchio, um moço meio rústico, mas que tem um certo carisma e que acaba por “domá-la” pelo cansaço.

O filme é bastante similar. A megera é Kat (a sumida Julia Stiles), uma garota que vive discutindo com o professor de literatura e ouve Bikini Kill, considerada uma “sujeitinha nojenta” pelos colegas. O jovem Cameron (vivido por Joseph Gordon Levitt antes da digievolução) quer sair com sua irmã mais nova, mas ela só pode namorar se Kat estiver saindo com alguém. Para isso, ele paga o charmoso delinquente juvenil Patrick (o saudoso Heath Ledger). E se essa trama não fosse shakespeariana o suficiente, ainda tem a cena final, em que Kat usa o poema que escreveu para o trabalho de literatura para se declarar. Ele é uma versão do Soneto 141, e é daí que vem o título 10 Coisas Que Eu Odeio Em Você.

Eu gosto muito desse filme. Ele é engraçado, tem uma trilha sonora ótima e eu me indentificava muito com a Kat na época da escola. Apesar de ser a mais famosa das comédias shakespearianas, o final de A Megera Domada soa um tanto trágico para leitoras femininas, então às vezes é legal ver uma versão em que a Catarina não vira uma esposa submissa e obediente no final. Julia Stiles ainda fez outra versão teen de Shakespeare anos depois: ela era a Desdêmona em Jogo de Intrigas, que é inspirado em Otelo. Mas este não chegou a fazer tanto sucesso.

3 – MUITO BARULHO POR NADA (EUA – 2012)
BASEADO EM: Muito Barulho Por Nada, ué! 😛

Este item é diferente dos outros da lista porque ele não muda quase nada da fonte. O inusitado neste caso foi o processo de produção.

Na vida real, Joss Whedon, o menino de ouro do Marvel Studios, é casado com Kai Cole, uma arquiteta, e vive em Santa Monica. Ela mesma projetou a bela casa em que moram, tomando o cuidado de incluir espaços para manter o singelo hábito que o casal tem desde os anos 90: convidar amigos para passar a noite bebendo e recitando peças de Shakespeare. Em outubro de 2011, Whedon tinha uma breve pausa nas filmagens de Os Vingadores, e precisava espairecer um pouco da pressão de produzir o maior blockbuster dos últimos anos. O que ele fez, então? Outro filme, é claro. Estamos falando de um workaholic patológico.

Ele então reuniu os amigos que geralmente participavam daquelas leituras e fez uma adaptação de Muito Barulho Por Nada. Repito, trata-se de um workaholic, então estes amigos são todos colaboradores frequentes. Gente de Buffy, A Caça Vampiros, Dollhouse, O Segredo da Cabana; até O Capitão Mal Reynolds de Firefly e o Agente Phil Coulson estão presentes, só para citar alguns ilustres. E assim, em um período de 12 dias, usando sua própria casa como cenário, ele filmou uma versão contemporânea da comédia, em preto e branco. E ficou muito bacana.

A peça se passa na cidade de Messina, na Itália, e gira em torno de dois casais. O primeiro, Cláudio e Hero, estão noivos e vão se casar em uma semana. O outro, Beatriz e Benedito, é formado por dois solteirões convictos que vivem trocando farpas, mas secretamente se amam. Cláudio e Hero conspiram para uní-los com a ajuda do nobre Dom Pedro, mas este tem um irmão ciumento, Dom João, que tenta estragar tudo. Mas tudo se acerta no final, graças ao policial canastrão que acidentalmente revela todo o plano do vilão.

Como eu comentei, quase nada foi alterado para o filme. Alguns personagens menores foram descartados, e um personagem mudou de gênero (o Conrado, um dos seguidores de Dom João, aqui é sua amante, interpretada por Riki Lindhome), mas fora isso, até o diálogo é tirado diretamente da peça. E acho que esse é o maior charme: as diferentes visões que as personagens têm sobre o amor, os conflitos, o humor e o tom afiado do texto, ainda soam totalmente atuais. E por mais que fique visível que foi um filme barato, também dá para notar que o elenco está muito à vontade, se divertindo tanto quanto quem assiste.

2 – O PLANETA PROIBIDO (EUA – 1956)
BASEADO EM: A Tempestade

Acredita-se que A Tempestade foi a última peça do nosso querido Willy. Ela acompanha Próspero, um homem que se distrai estudando livros de magia em sua enorme biblioteca, e esquece de certos detalhes insignificantes, como o fato de que ele é o Duque de Milão. Assim, seu irmão Antônio toma seu título e o manda para uma ilha remota com sua filhinha Miranda. Chegando lá, Próspero usa seus poderes para tomar conta da ilha e seus habitantes, que incluem uma bruxa, seu filho monstruoso, e Ariel, um tipo de espírito mágico.

Muitos anos depois, seu irmão usurpador está viajando pelo mar com o Rei de Nápoles e sua côrte, então Próspero e Ariel conjuram uma tempestade mágica para afundar a nau onde eles estão e trazê-los para a ilha. E aí temos as intrigas entre os dois irmãos, Miranda e o Príncipe desenvolvem um romance, e os marinheiros bêbados providenciam a comédia. A história as vezes parece um conto de fadas, e ainda tem um grande subtexto sobre a colonização.

Já o filme, que é de 1956, se passa na última década do século 21, época em que nós já estamos colonizando outros planetas. O Comandante J.J. Addams está numa expedição e por acaso consegue contatar o Dr. Morbius, membro de outra tropa que tinha partido da Terra muito tempo antes e desapareceu. Agora ele vive recluso com sua filha no planeta Altair IV. Aqui, ao invés de um espírito, eles são recebidos por Robby, o Robô, e ao invés de um mago, o Dr. Morbius é um cientista, que domina a avançada tecnologia dos Krell, antigos habitantes do planeta que foram extintos misteriosamente.

Só pelo fato do Comandante ser interpretado pelo inesquecível Leslie Nielsen, você já pode imaginar quão legal este filme é. Apesar da idade, ele usa tão bem os recursos da época que continua digno até hoje, e é evidente a influência que ele teve em Star Trek, Star Wars, Doctor Who e tantos outros gigantes do gênero que vieram depois. Um clássico. Um tempo atrás, surgiram rumores de um possível remake escrito por J. Michael Straczynski, criador de Babylon 5, e eu torço para que eles não tenham desistido.

1 – O REI LEÃO (EUA – 1994)
BASEADO EM: Hamlet

Apesar dos leões, hienas, javalis e suricatos que cantam, este clássico da minha infância é uma adaptação bastante fiel de Hamlet. Vejamos: temos o príncipe, o Simba/Hamlet. Temos o tio malvado, o Scar/Claudius, que mata seu pai e toma o trono. O tio o convence a viajar para uma terra distante e conspira para que ele seja morto por lá, mas ele escapa. Tem a Nala, que era a amiga de infância do príncipe e passa a ser seu interesse amoroso, sendo assim a Ophelia desta história. E não podemos esquecer do Mufasa, que mesmo morto dá um jeito de aparecer para aconselhar o filho, assim como o Rei Hamlet.

É lógico que, como em A Pequena Sereia, O Corcunda de Notre Dame, Mogli e tantas outras adaptações, aqui a Disney teve de suavizar algumas partes para que uma tragédia dessas pudesse passar por um filme infantil. Por exemplo: neste caso, o titio não se casa com a viúva do Rei. E o Hamlet original também não teve uma fase feliz de Hakuna Matata. Ao invés disso, ele está sempre perturbado em busca de vingança e constantemente contempla o suicídio. Há controvérsias, mas muitos acreditam que até o ilustre solilóquio do “ser ou não ser, eis a questão”, é uma dessas vezes em que ele pensa em se matar.

O próprio final também mudou. Na versão felina (eu não tenho de marcar isso como spoiler, tenho?), Simba retorna, retoma seu reino e expulsa seu tio, que acaba sendo morto por suas suas antigas aliadas, as hienas. No original, explicando sucintamente, morre todo mundo. Bem que foi dito: “quando as mágoas vêm, elas não vêm em espiões isolados, mas em batalhões”. É um ciclo sem fim.

Mas mesmo com estas mudanças, O Rei Leão ainda leva o primeiro lugar graças à sequência, que também usa outra trama do Willy. Dessa vez, a princesa Kiara, filha de Simba, e Kovu, o jovem herdeiro do Scar, se apaixonam. “O curso do amor verdadeiro nunca fluiu suavemente”, então eles têm de enfrentar a rivalidade de suas famílias para ficarem juntos, no melhor estilo Romeu e Julieta. Também não rola o suicídio duplo no final, mas em compensação, tem a Zira, mãe do Kovu, que se parece muito com outra personagem shakespeariana: a terrível Lady Macbeth. A música dela é uma das mais tremendonas da Disney:

Se lembra de mais algum uso esquisito que deram à obra de Shakespeare na cultura pop? Compartilhe conosco nos comentários.

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